Os familiares de uma
pessoa que está com problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas é
peça fundamental no tratamento desta, visto que representam sua referência de
apoio e afeto. A carência desses elementos, muitas vezes, está por detrás dos
desentendimentos que ocasionaram na pessoa a permanência nas ruas, o sentimento
de solidão e o uso de drogas, caracterizando que a dinâmica familiar pode influenciar
indiretamente a ocorrência da dependência química em seus membros (SOUZA;
PINHEIRO; s/d).
Assim como a família também
pode se configurar em um fator protetor para a ocorrência de problemas
relacionados com o uso de substâncias psicoativas, um padrão familiar
disfuncional como, por exemplo, o uso de álcool e/ou outras drogas pelos pais,
é um fator de risco importante para que adolescentes iniciem o consumo dessas
substâncias (MOMBELLI; MARCON; COSTA, 2010).
Tissot (2006), realizou
um estudo no qual avaliou emoções expressas por familiares de usuários
dependentes de substâncias psicoativas em tratamento, e suas relações com a
permanência desses usuários em um programa de tratamento. Foram avaliados os seguintes
aspectos emocionais do familiar de maior envolvimento emocional com o paciente:
hostilidade, superenvolvimento emocional e calor afetivo. Não foi encontrada
associação entre o calor afetivo do familiar e a permanência do paciente no
tratamento. A presença do sentimento de hostilidade no familiar foi relacionada
ao abandono prematuro do tratamento. Um maior nível de superenvolvimento
emocional do familiar foi maior no grupo de pacientes que se manteve até o
final do programa de tratamento proposto pela instituição.
Corroborando com esses
aspectos, as pesquisadoras Crauss e Abaid (2012) nos apresentam que a família
de usuários dependentes de substâncias psicoativas é um dos fatores
preponderantes que motivam o tratamento, e também exercem influência na tomada
de decisão para a busca por tratamento. Em seus estudos, usuários em tratamento
referiram “que estão fazendo o tratamento por causa da família, sendo para
recuperá-la ou reconquistar a confiança dos membros da família”.
Essas autoras relatam
que a família está relacionada ainda à expectativa do pós-alta e como principal
rede de apoio. A família é motivadora para a busca por tratamento no sentido de
que o indivíduo não quer perder o contato com familiares por causa dos seus
problemas relacionados com o uso de substâncias, e buscam recuperar a família
que mencionam terem perdido. Para esses, é importante tratar-se e entrar em
contato com sua família para reparação dos sofrimentos que causaram, e nesse
sentido, percebe-se uma lacuna nos serviços de saúde quanto à intermediação
dessa reaproximação ante a fragilidade desses vínculos rompidos.
O núcleo familiar é o
primeiro modelo do indivíduo sobre as relações humanas. Por meio dele são
internalizados valores, princípios e normas sociais. Uma estrutura familiar
favorável, com uma comunicação eficiente entre seus membros e cooperação mútua
na resolução de conflitos, aumenta a probabilidade de um bom prognóstico na
recuperação de um usuário dependente de substâncias. Além disso, o suporte
social familiar é fundamental para um programa eficaz de prevenção de recaída,
pois por esse apoio será facilitado o desenvolvimento social do indivíduo
egresso de um longo período de tratamento. Ressalta-se que as intervenções com
as famílias devem ser realistas, sem idealizações, e serem capazes de
incentivar que cada membro reflita sobre a disfuncionalidade do grupo familiar
e sua possível contribuição para o agravo da dependência química nesse grupo
(CRAUSS; ABAID, 2012).
Podemos observar que esse
tema vem sendo desenvolvido por diversos pesquisadores, cada qual com seu
peculiar apontamento, para que se consiga uma maior compreensão do papel que
cada membro do grupo familiar de um usuário dependente de substâncias exerce
nesse contexto.
Uma valiosa
contribuição nos é ofertada por Orth e Moré (2008). O trabalho dessas
pesquisadoras contempla diretamente aspectos da estrutura e dinâmica de
famílias nas quais uma ou mais pessoas se tornaram usuárias dependentes de
substâncias psicoativas, iniciando com a constatação de que nem todas as
famílias dessas pessoas podem ser consideradas disfuncionais, pois não estão
totalmente desprovidas dos fatores de proteção necessários para o
desenvolvimento de seus integrantes. O que acontece é que na família que possui
um membro que se torna um usuário dependente de substâncias, ocorre um círculo
vicioso no qual a disfuncionalidade e a dependência de substâncias se reforçam
mutuamente e se mantém.
Essas autoras
apresentam dados encontrados sobre a diferença entre a dinâmica familiar
conforme o sexo do usuário dependente. No grupo familiar do usuário masculino,
a
figura materna mantém um comportamento apegado, superprotetor, permissivo com o
dependente, e este ocupa uma posição favorecida em relação aos outros filhos.
As mães dos usuários geralmente os descrevem como bem educados e afirmam que
não deram trabalho. Em compensação, os pais são vistos como ausentes,
desapegados e fracos e, por sua vez, com uma disciplina rude e incoerente, e as
relações estabelecidas são difíceis, com efetivo distanciamento afetivo. Os
irmãos dos usuários masculinos mantêm com o pai uma relação mais positiva e próxima
(ORTH; MORÉ, 2008, p.295).
Por outro lado, segundo
esse estudo, as usuárias do sexo feminino que desenvolveram uma relação de
compulsão que evoluiu para a dependência da substância utilizada, “mantêm com a
mãe uma relação de rivalidade e as veem como figuras autoritárias e
superprotetoras; enquanto que os pais são caracterizados como incapazes,
indulgentes, sexualmente agressivos e alcoolistas”.
Os dados revelaram
ainda que nessas famílias, qualquer que seja o sexo do usuário dependente,
existe uma grande incidência de ausência dos pais, por separação ou morte. Há
uma frequência maior para a ausência da figura paterna, e ocorre também a
ausência de ambos os pais. Stanton e Todd (1985) apud Orth e Moré (2008) relatam que o início do uso de drogas
“parece estar associado a esta perda ou então a de outra pessoa significativa,
geralmente devido a mortes repentinas e traumáticas”.
Uma problemática que
pode ser encontrada nessas famílias é a questão do como os usuários dependentes
costumam estabelecer suas relações, tanto com os membros da família como com as
pessoas fora desse núcleo familiar. Existe uma vinculação forte, no qual se
observa que “as mães dos dependentes relacionam-se com estes de forma a não
haver uma separação entre si, o que torna a relação simbiótica, na qual a mãe
se apega ao filho desde a tenra idade e trata-o como se tivesse idade menor do
que realmente tem”. A tendência observada é a formação de fortes vínculos
também com os amigos, que servem como apoio no momento de conflitos. Nessas
famílias é comum a presença de outros comportamentos compulsivos e/ou
dependentes além das substâncias psicoativas, como os relacionados à, por
exemplo, jogos, comida, trabalho, dentre outros. Nesses comportamentos, a
pessoa encontra uma sensação de realização pessoal e satisfação, mesmo que
passageira, pois não consegue na família os subsídios necessários para isso,
pois seu fracasso existe como parte integrante da dinâmica adoecida dessa
família. Um dado relevante que os estudos apresentam é que mesmo com a morte ou
com a recuperação definitiva do usuário dependente, a funcionalidade do grupo
familiar não é reestabelecida, pois após um período de tempo os conflitos
reaparecem, podendo ocorrer que outro membro apresente o comportamento (ORTH;
MORÉ, 2008).
Por tudo isso, pode ser
observado que o tratamento da dependência química só é possível com a inclusão
dos familiares, pois todos os membros desse contexto familiar nuclear do
usuário dependente estão adoecidos e contribuindo para a permanência desse
intrincado processo, no qual o fenômeno da dependência química e de outros
comportamentos compulsivos é um sintoma, e não causa, da disfuncionalidade
familiar.
Referências
CRAUSS,
R.M.G.; ABAID, J.L.W. A dependência química e o tratamento de desintoxicação hospitalar
na fala dos usuários. Revista Contextos Clínicos, São
Leopoldo, v. 5, n. 1, p.62-72, jan./jun., 2012.
MOMBELLI,
M.A.; MARCON, S.S.; COSTA, J.B. Caracterização das internações psiquiátricas
para desintoxicação de adolescentes dependentes químicos. Revista Brasileira de Enfermagem,
Brasília, v. 63, n. 5, p.735-740, set./out., 2010.
ORTH,
A.P.S.; MORÉ, C.L.O. O funcionamento de famílias com membros dependentes de
substâncias psicoativas. Revista Psicologia Argumento, v. 26,
n. 55, p.293-303, out./dez., 2008.
SOUZA,
F.R.; PINHEIRO, S.D. A importância da família na percepção do dependente
químico em tratamento em uma comunidade terapêutica do Vale dos Sinos.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia), Faculdades Integradas
de Taquara - FACCAT, Taquara/RS, s/d. Disponível em:
https://psicologia.faccat.br/moodle/pluginfile.php/197/course/section/100/fernanda.pdf
TISSOT,
C.L. A
influência da família sobre a adesão ao tratamento do dependente químico: um
estudo piloto sobre a emoção expressa. Dissertação (Mestrado em
Ciências), Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.
Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5142/tde-10102006-173615/