terça-feira, 6 de outubro de 2015

A assistência à família no processo de reabilitação e prevenção à dependência química.

(Adriana Nogueira)

Os familiares de uma pessoa que está com problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas é peça fundamental no tratamento desta, visto que representam sua referência de apoio e afeto. A carência desses elementos, muitas vezes, está por detrás dos desentendimentos que ocasionaram na pessoa a permanência nas ruas, o sentimento de solidão e o uso de drogas, caracterizando que a dinâmica familiar pode influenciar indiretamente a ocorrência da dependência química em seus membros (SOUZA; PINHEIRO; s/d).
Assim como a família também pode se configurar em um fator protetor para a ocorrência de problemas relacionados com o uso de substâncias psicoativas, um padrão familiar disfuncional como, por exemplo, o uso de álcool e/ou outras drogas pelos pais, é um fator de risco importante para que adolescentes iniciem o consumo dessas substâncias (MOMBELLI; MARCON; COSTA, 2010).
Tissot (2006), realizou um estudo no qual avaliou emoções expressas por familiares de usuários dependentes de substâncias psicoativas em tratamento, e suas relações com a permanência desses usuários em um programa de tratamento. Foram avaliados os seguintes aspectos emocionais do familiar de maior envolvimento emocional com o paciente: hostilidade, superenvolvimento emocional e calor afetivo. Não foi encontrada associação entre o calor afetivo do familiar e a permanência do paciente no tratamento. A presença do sentimento de hostilidade no familiar foi relacionada ao abandono prematuro do tratamento. Um maior nível de superenvolvimento emocional do familiar foi maior no grupo de pacientes que se manteve até o final do programa de tratamento proposto pela instituição.
Corroborando com esses aspectos, as pesquisadoras Crauss e Abaid (2012) nos apresentam que a família de usuários dependentes de substâncias psicoativas é um dos fatores preponderantes que motivam o tratamento, e também exercem influência na tomada de decisão para a busca por tratamento. Em seus estudos, usuários em tratamento referiram “que estão fazendo o tratamento por causa da família, sendo para recuperá-la ou reconquistar a confiança dos membros da família”.
Essas autoras relatam que a família está relacionada ainda à expectativa do pós-alta e como principal rede de apoio. A família é motivadora para a busca por tratamento no sentido de que o indivíduo não quer perder o contato com familiares por causa dos seus problemas relacionados com o uso de substâncias, e buscam recuperar a família que mencionam terem perdido. Para esses, é importante tratar-se e entrar em contato com sua família para reparação dos sofrimentos que causaram, e nesse sentido, percebe-se uma lacuna nos serviços de saúde quanto à intermediação dessa reaproximação ante a fragilidade desses vínculos rompidos.
O núcleo familiar é o primeiro modelo do indivíduo sobre as relações humanas. Por meio dele são internalizados valores, princípios e normas sociais. Uma estrutura familiar favorável, com uma comunicação eficiente entre seus membros e cooperação mútua na resolução de conflitos, aumenta a probabilidade de um bom prognóstico na recuperação de um usuário dependente de substâncias. Além disso, o suporte social familiar é fundamental para um programa eficaz de prevenção de recaída, pois por esse apoio será facilitado o desenvolvimento social do indivíduo egresso de um longo período de tratamento. Ressalta-se que as intervenções com as famílias devem ser realistas, sem idealizações, e serem capazes de incentivar que cada membro reflita sobre a disfuncionalidade do grupo familiar e sua possível contribuição para o agravo da dependência química nesse grupo (CRAUSS; ABAID, 2012).
Podemos observar que esse tema vem sendo desenvolvido por diversos pesquisadores, cada qual com seu peculiar apontamento, para que se consiga uma maior compreensão do papel que cada membro do grupo familiar de um usuário dependente de substâncias exerce nesse contexto.
Uma valiosa contribuição nos é ofertada por Orth e Moré (2008). O trabalho dessas pesquisadoras contempla diretamente aspectos da estrutura e dinâmica de famílias nas quais uma ou mais pessoas se tornaram usuárias dependentes de substâncias psicoativas, iniciando com a constatação de que nem todas as famílias dessas pessoas podem ser consideradas disfuncionais, pois não estão totalmente desprovidas dos fatores de proteção necessários para o desenvolvimento de seus integrantes. O que acontece é que na família que possui um membro que se torna um usuário dependente de substâncias, ocorre um círculo vicioso no qual a disfuncionalidade e a dependência de substâncias se reforçam mutuamente e se mantém.
Essas autoras apresentam dados encontrados sobre a diferença entre a dinâmica familiar conforme o sexo do usuário dependente. No grupo familiar do usuário masculino,

a figura materna mantém um comportamento apegado, superprotetor, permissivo com o dependente, e este ocupa uma posição favorecida em relação aos outros filhos. As mães dos usuários geralmente os descrevem como bem educados e afirmam que não deram trabalho. Em compensação, os pais são vistos como ausentes, desapegados e fracos e, por sua vez, com uma disciplina rude e incoerente, e as relações estabelecidas são difíceis, com efetivo distanciamento afetivo. Os irmãos dos usuários masculinos mantêm com o pai uma relação mais positiva e próxima (ORTH; MORÉ, 2008, p.295).

Por outro lado, segundo esse estudo, as usuárias do sexo feminino que desenvolveram uma relação de compulsão que evoluiu para a dependência da substância utilizada, “mantêm com a mãe uma relação de rivalidade e as veem como figuras autoritárias e superprotetoras; enquanto que os pais são caracterizados como incapazes, indulgentes, sexualmente agressivos e alcoolistas”.
Os dados revelaram ainda que nessas famílias, qualquer que seja o sexo do usuário dependente, existe uma grande incidência de ausência dos pais, por separação ou morte. Há uma frequência maior para a ausência da figura paterna, e ocorre também a ausência de ambos os pais. Stanton e Todd (1985) apud Orth e Moré (2008) relatam que o início do uso de drogas “parece estar associado a esta perda ou então a de outra pessoa significativa, geralmente devido a mortes repentinas e traumáticas”.
Uma problemática que pode ser encontrada nessas famílias é a questão do como os usuários dependentes costumam estabelecer suas relações, tanto com os membros da família como com as pessoas fora desse núcleo familiar. Existe uma vinculação forte, no qual se observa que “as mães dos dependentes relacionam-se com estes de forma a não haver uma separação entre si, o que torna a relação simbiótica, na qual a mãe se apega ao filho desde a tenra idade e trata-o como se tivesse idade menor do que realmente tem”. A tendência observada é a formação de fortes vínculos também com os amigos, que servem como apoio no momento de conflitos. Nessas famílias é comum a presença de outros comportamentos compulsivos e/ou dependentes além das substâncias psicoativas, como os relacionados à, por exemplo, jogos, comida, trabalho, dentre outros. Nesses comportamentos, a pessoa encontra uma sensação de realização pessoal e satisfação, mesmo que passageira, pois não consegue na família os subsídios necessários para isso, pois seu fracasso existe como parte integrante da dinâmica adoecida dessa família. Um dado relevante que os estudos apresentam é que mesmo com a morte ou com a recuperação definitiva do usuário dependente, a funcionalidade do grupo familiar não é reestabelecida, pois após um período de tempo os conflitos reaparecem, podendo ocorrer que outro membro apresente o comportamento (ORTH; MORÉ, 2008).

Por tudo isso, pode ser observado que o tratamento da dependência química só é possível com a inclusão dos familiares, pois todos os membros desse contexto familiar nuclear do usuário dependente estão adoecidos e contribuindo para a permanência desse intrincado processo, no qual o fenômeno da dependência química e de outros comportamentos compulsivos é um sintoma, e não causa, da disfuncionalidade familiar.

Referências

CRAUSS, R.M.G.; ABAID, J.L.W. A dependência química e o tratamento de desintoxicação hospitalar na fala dos usuários. Revista Contextos Clínicos, São Leopoldo, v. 5, n. 1, p.62-72, jan./jun., 2012.

MOMBELLI, M.A.; MARCON, S.S.; COSTA, J.B. Caracterização das internações psiquiátricas para desintoxicação de adolescentes dependentes químicos. Revista Brasileira de Enfermagem, Brasília, v. 63, n. 5, p.735-740, set./out., 2010.

ORTH, A.P.S.; MORÉ, C.L.O. O funcionamento de famílias com membros dependentes de substâncias psicoativas. Revista Psicologia Argumento, v. 26, n. 55, p.293-303, out./dez., 2008.

SOUZA, F.R.; PINHEIRO, S.D. A importância da família na percepção do dependente químico em tratamento em uma comunidade terapêutica do Vale dos Sinos. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Psicologia), Faculdades Integradas de Taquara - FACCAT, Taquara/RS, s/d. Disponível em:
https://psicologia.faccat.br/moodle/pluginfile.php/197/course/section/100/fernanda.pdf

TISSOT, C.L. A influência da família sobre a adesão ao tratamento do dependente químico: um estudo piloto sobre a emoção expressa. Dissertação (Mestrado em Ciências), Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. Disponível em:
http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/5142/tde-10102006-173615/

O Terapeuta Ocupacional como profissional de saúde no processo de reabilitação da pessoa com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas

(Adriana Nogueira)

Governo Federal, por meio de organismos tais como o Ministério da Saúde, da Justiça, do Desenvolvimento Social, dentre outros, aponta que a atenção à pessoa com problemas relacionados ao uso de álcool e outras drogas deve ser composta por serviços e equipamentos diversos, que atendam as distintas necessidades dessas pessoas. Especificamente na área da saúde o governo aponta a importância dos serviços de atenção básica que ofereçam ações específicas para esse público, bem como os consultórios de rua e os equipamentos especializados como, por exemplo, os CAPS-ad, os leitos hospitalares e as unidades de acolhimento (BRASIL, 2012).
Este documento enfatiza que somente as equipes de saúde possuem a competência necessária para encaminhar o paciente para o serviço que melhor atenda suas necessidades naquele momento específico. A avaliação dos profissionais de saúde garantem o encaminhamento do paciente para esses serviços tais como, por exemplo, os CAPS (tratamento ambulatorial ), internação (hospitais, unidades de acolhimento, dentre outros), bem como atendimento em unidades de pronto-atendimento, dependendo da demanda identificada. Essa avaliação da equipe de saúde apresenta ainda a característica muito importante de poder identificar outras demandas do paciente para além da questão do uso de substâncias. Situações de riscos extremos à saúde, obviamente demandam atendimento imediato, e a identificação da necessidade de outros acompanhamentos, como o sócio-assistencial por exemplo, deverá ser avaliado conjuntamente com a equipe deste serviço (BRASIL, 2012).
Durante o atendimento, devido ao nível de intoxicação do paciente, é comum que o mesmo não forneça as informações mínimas para um atendimento eficaz. Essas informações deverão ser obtidas dos acompanhantes ou dos policiais sempre que for possível. O principal objetivo do atendimento é a manutenção das funções vitais, porém um completo exame físico e mental, bem como exames laboratoriais e análises toxicológicas devem ser realizados para avaliação de comorbidades como, por exemplo, ferimentos, infecção pulmonar, insuficiência do funcionamento hepático e alterações neurológicas. Estudos comprovam a presença concomitante de transtornos psiquiátricos dentre os usuários de substâncias psicoativas, a denominada “comorbidade psiquiátrica”, ou seja, a ocorrência conjunta de dois ou mais transtornos mentais com outras condições clínicas gerais. Os tipos de transtornos mais comuns são: demência, delirium, psicose (esquizofrenia), transtorno de humor (bipolar, distimia, depressão, etc), transtornos ansiosos (pânico, fobia, transtorno obsessivo compulsivo), déficit de atenção/hiperatividade e transtornos de personalidade (FERREIRA et al, 2005).

Os profissionais de saúde possuem ainda um importante papel dentro do processo de reabilitação, que é o de realizar ações promotoras de saúde junto às pessoas por eles atendidas. Na I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, realizada no Canadá em 1986, foi redigida a denominada “Carta de Ottawa”, na qual se encontra que a promoção de saúde é um processo que capacita a comunidade a adquirir comportamentos que melhorem sua saúde e qualidade de vida e a participar de maneira efetiva para controlar este processo. Este documento indica que para se obter “bem-estar físico, mental e social os indivíduos e grupos devem saber identificar aspirações, satisfazer necessidades e modificar favoravelmente o meio ambiente”, e que “a saúde deve ser vista como um recurso para a vida, e não como objetivo de viver” (BRASIL, 2002).
As ações promotoras de saúde procuram refletir sobre as condições de vida das pessoas, as quais devem tomar suas decisões, tanto individuais quanto coletivas, de maneira que favoreçam a saúde e a qualidade de vida. A promoção de saúde apresenta-se como

uma estratégia de mediação entre as pessoas e seu ambiente, combinando escolhas individuais com responsabilidade social pela saúde. Estas estratégias de promoção da saúde são mais integradas e intersetoriais, bem como supõem uma efetiva participação da população desde sua formulação até sua implementação (BUSS, 2005, p.34-35).

Sendo assim, a promoção da saúde relaciona-se com o cotidiano do indivíduo e ao contexto no qual ele se insere, participa e usufrui o que a vida lhe oferece. Nesse sentido, o profissional de Terapia Ocupacional inserido na equipe de atendimento, possui a responsabilidade de promover a saúde do indivíduo, pois esse campo de atuação está diretamente ligado às atividades cotidianas, as quais definem o estilo e qualidade de vida desta pessoa. Os terapeutas ocupacionais crêem nas qualidades próprias das atividades, necessárias para o bem-estar físico e emocional e, portanto, capaz de promover saúde (HAHN, 1995).
Esta pesquisadora reflete que as atividades que estes profissionais desenvolvem com seus clientes, particularmente as que se enquadram nos conceitos de AVD’s (atividades da vida diária) e AIVD’s (atividades instrumentais da vida diária), devem incluir ações informativas sobre saúde e bem-estar como primeiro objetivo de intervenção. O relacionamento terapeuta-cliente, nestas ações promotoras de saúde e qualidade de vida, se caracteriza então como uma relação muita mais educativa do que terapêutica. Nesse sentido, o terapeuta ocupacional, neste papel de agente educacional promotor de saúde, pode enriquecer sua atuação com as reflexões que Paulo Freire apresenta sobre a arte de ensinar.
Para FREIRE (2002), o ensino é fundamentado pela ética e pelo respeito à dignidade e à autonomia da pessoa a quem se pretende instruir sobre algo. Requer que o educador saiba pensar, no sentido de que duvide de suas próprias certezas, questione suas verdades. Quando ele assim age, existe uma maior facilidade em promover no educando o mesmo espírito. Ensinar requer ainda a aceitação do risco que é aventurar-se em busca do “novo”, rejeitando todas as formas de discriminação que separe as pessoas, pois “ao ser produzido, o conhecimento novo supera outro que foi novo antes e se fez velho e se ‘dispõe’ a ser ultrapassado por outro amanhã” (p.15). Nesse sentido, torna-se imperativo tanto conhecer o que o educando já sabe, bem como estar aberto ao conhecimento que está em construção, pois “não há docência sem discência”, ou seja, ensinar não é algo próprio do educador. Embora existam diferenças peculiares entre educador e educando, eles não são objetos um do outro, pois “quem ensina aprende ao ensinar e quem aprende ensina ao aprender” (p.12).
Neste modo de se conceber o processo ensino-aprendizagem, prossegue Freire, o educador, apesar de reconhecer o condicionamento a que os seres humanos estão sujeitos, mais ainda reconhece a possibilidade de interferir na realidade e modificá-la, ou seja, o futuro não é algo imutável. O ser humano, enquanto ser inacabado deve estar consciente deste “inacabamento”, pois a diferença entre o ser condicionado e o ser determinado reside exatamente nesta característica, o primeiro possui a consciência do inacabamento, e isto pode levá-lo a deixar de ver os obstáculos como algo pré-estabelecido, uma fatalidade, e reconhecer a transitoriedade dos mesmos. Para Freire, “é na inconclusão do ser, que se sabe como tal, que se funda a educação como processo permanente” (p.34).
Desta forma, a atuação do terapeuta ocupacional na promoção da saúde, pautada sobre estes princípios apresentados por Paulo Freire, possui a capacidade de estabelecer, junto com o indivíduo ou grupo alvo de sua intervenção, um processo de conscientização de que existem outras possibilidades além da realidade apresentada, pois esta não “é” assim, apenas “está” assim.

Referências:

BRASIL. Casa Civil, Ministério da Saúde, Ministério do Desenvolvimento Social e Combate a Fome, Ministério da Justiça, Ministério da Educação, Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Cartilha: Crack, é Possível Vencer. Brasília, 2012.

BUSS, P.M. Uma  introdução ao conceito de Promoção da Saúde. In: Czerina, D.; Freitas, C.M. (org). Promoção da Saúde: conceitos, reflexões, tendências. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2005.

FERREIRA, F.G.K.Y.; LUZ, J.A.; OBRZUT-NETO, L.; SANTOS, K.A. Uma visão multiprofissional humanizada no tratamento da pessoa com dependência química em enfermaria psiquiátrica de um hospital geral no Paraná. Cogitare Enfermagem, v. 10, n. 2, p. 54-62, mai/ago. 2005.

FREIRE, P. Pedagogia da Autonomia: saberes necessários à prática educativa. 23ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

HAHN, M.S. Promoção da saúde e terapia ocupacional. Revista do Centro de Estudos de Terapia Ocupacional - CETO, v.1, n.1, p.10-13, São Paulo, 1995. Disponível para download em: